Kata Saifa
Muitas são as interpretações feitas acerca dos efeitos do treino
de Kata para o desenvolvimento do praticante de Karatê-Do.
Para alguns não passam de movimentos realizados com o objetivo de
ganhar taças, para outros uma obsessão por saber o maior número
deles de modo a mostrar o seu valor como praticantes de Karatê-Do
e ainda há aqueles que não percebem muito bem qual a sua
finalidade para o treino, entre muitas outras razões.
Espero que este artigo possa esclarecer certos aspectos da prática
dos Kata que, para muitos de nós, permanecem num certo
obscurantismo, tanto devido ao desconhecimento desses aspectos por
quem os ensina ou ainda a tentativa de criação de uma aura de
mistério em torno deles.
O Kata pode ser considerado como uma representação de movimentos
baseados em formas de combater e que também visam o
desenvolvimento dessas formas.
Qualquer pessoa com o mínimo de habilidade mental e conhecimento
técnico conseguiria construir um Kata, só que com a diferença,
em relação aos tradicionais, de provavelmente não cristalizar as
formas de lutar que outrora se mostraram eficientes. Nem tão pouco
ter a componente medicinal muitas vezes evocada na construção dos
mesmos pelos antigos mestres (o Kata Sanchin, por exemplo,
tradicionalmente possui um componente medicinal através do tipo de
respirações e dinâmica corporal que utiliza).
- Eliminar as distrações externas e concentrar-se apenas na sua
intenção;
- Coordenar a respiração e sincronizá-la com a atividade muscular.
Quando se esticar o braço, expirar até parar, mas conservar sempre
um percentual do ar. Deve-se ter a atenção de nunca expirar todo
o ar num só momento. Quando se expira, o nosso corpo torna-se leve.
Quando inspiramos, o nosso corpo fica enraizado;
- Ouvir a respiração e ficar atento a todas as partes do nosso
corpo;
- Deve haver uma contração muscular constante, mas flexível nos
seguintes grupos musculares: deltóide, trapézio, grande dorsal,
dentados e peitorais;
- Para promover uma respiração diafragmática perfeita, a espinha
deve estar paralela ao estômago;
- As técnicas são executadas para frente e para trás de modo aos
cotovelos tocarem na cintura.
- Ao compreender as normas físicas e metafísicas do duro e do
suave (Gōjū em Japonês) temos de aprender que é o balanço
eqüitativo entre os dois que permite triunfar o maior adversário
de todos, nós próprios.
- A dureza representa a força material do corpo humano e a
agressividade de cada um. A suavidade representa a tranqüilidade
do nosso caráter e a elasticidade em ceder perante uma adversidade.
Juntos, são atributos que se revelam através de uma análise
contínua e um compromisso genuíno.
- Cada um deve opor a força à flexibilidade e vice-versa. Todos
os movimentos do corpo, incluindo a esquiva e as manobras
evasivas, devem ser executados com uma respiração correta. O corpo
deve ser flexível como um galho de salgueiro sujeito a uma ventania;
ele cede com a força do vento, mas quando esta termina o galho
espontaneamente volta à sua posição inicial. Quando se inala e o
corpo se estica, ele parece uma onda gigante sem qualquer
resistência. No entanto, quando uma posição estável é necessária e
o ar é expelido dos pulmões enquanto se contraem os músculos,
ficamos estáticos, como uma montanha.
O Kata é um método ritual através do qual os segredos da defesa
pessoal são transmitidos de geração em geração. Cada Kata representa
uma miríade de cenários possíveis de defesa pessoal - enganando-se,
pois aqueles que separam as técnicas de Kata no
Bunkai (aplicação do Kata) das técnicas de defesa pessoal como se
fosse algo de diferente - porém é mais do que uma simples combinação
de técnicas. Assim, cada Kata é uma tradição única com princípios,
estratégias e aplicações distintas. As aplicações das formas são
concebidas para o uso em situações de defesa pessoal de vida ou
morte e assim podem ser usadas para controlar, machucar, mutilar
ou mesmo matar alguém se necessário.
Um segundo, mas igualmente importante aspecto do Kata é a sua
utilidade terapêutica. Os vários paradigmas de imitação dos animais
e os padrões respiratórios foram utilizados para melhorar a
circulação sanguínea e a eficiência respiratória, estimular a
bioenergia (Ki), estender e fortalecer os músculos, fortalecer os
ossos e tendões e massagear os órgãos internos.
Executar um Kata desenvolve igualmente a coordenação, utiliza
esforço de torção e promove a rotação do quadril. Assim, vai
permitir o incremento da biomecânica de cada um e um desempenho
ótimo utilizando energia limitada. Através da regulação da
respiração e sincronizando-a com a expansão e contração da
atividade muscular vamos promover a oxigenação do sangue e a
aprendizagem de como criar, conter e libertar o Ki. Esta energia
pode levar a um considerável efeito terapêutico para o corpo, quer
interna quer externamente.
Quando se executa um Kata corretamente cada um deve promover a sua
energia corporal e não se cansar excessivamente. Quando em posturas
baixas, as costas devem estar direitas, os ombros baixos, queixo
para fora, pélvis puxada para cima, os pés firmemente implantados e
o corpo flexível de modo a que os canais de energia possam ser
plenamente abertos e os alinhamentos apropriados cultivados.
O grupo de alinhamentos únicos que são cultivados pelos Kata
ortodoxos permite a abertura dos canais do corpo permitindo que a
energia flua espontaneamente. O Ki consegue assim "limpar" o sistema
nervoso e regular a função dos órgãos internos.
Em resumo, a prática regular dos Kata vai desenvolver um corpo
saudável, reflexos rápidos e uma técnica eficiente, ajudando a
preparar uma resposta mais efetiva para situações potencialmente
perigosas.
Outro aspecto importante quando falamos em Kata é a sua origem
histórica. Durante a prática dificilmente se tem acesso a estas
informações e ao propósito real dos Kata que praticamos, criando
assim um vazio nos praticantes, pois a sua finalidade passa a ser
"decorá-lo" para obter êxito em exames de graduação e ou competições.
Ao conhecermos a história de um Kata apercebemo-nos das
circunstâncias em que foi criado, da sua origem, do seu trajeto,
dos protagonistas, etc... o que nos permite dar sentido a sua
execução e conhecer o seu propósito na altura em que foi idealizado.
Além disso, a sua história constitui um estímulo positivo, ao saber
que foi praticado por mestres que estão separados de nós centenas
de anos e em circunstâncias muito particulares.
Infelizmente hoje em dia a prática de Karatê-Do passa muito por uma
aprendizagem incorreta dos Kata, não se objetivando o seu componente
prático e os pormenores que o constituem. Um Kata precisa ser
trabalhado, surgindo para nós como uma pedra bruta que precisa ser
limada. Isto quer pela prática da forma (execução do Kata), ou pela
sua aplicação prática (Bunkai).
O ciclo muito característico - memorização/exame - tem de ser
quebrado e é preciso conceber nos alunos e nos instrutores um
conceito global, vendo cada técnica do Bunkai como uma situação que
representa uma parte de um suposto combate real que precisa ser
assimilada (não decorada) e compreendida de modo a surgir
espontaneamente numa situação real.
A finalidade é também muito importante, quando praticamos um Kata,
por exemplo, o Naihanchi Shodan é preciso ter consciência que cada
subida e descida da perna na posição Naihanchi-dachi podem representar
o quebrar ou o luxar da perna ou joelho do adversário. Este fato
deve estar na nossa mente ao executá-lo, pois assim poderemos
compreender o verdadeiro sentido para o qual esta técnica foi
construída, além de aperfeiçoar a execução de tal movimento, já que
passamos a ter consciência do seu objetivo.
Outro exemplo é o Kata Sanchin, que representa, segundo o seu nome,
o combate entre o corpo, a mente e o espírito. Deste modo apesar da
sua forma não ser muito complicada, o uso da correta respiração,
contração muscular e movimento durante o condicionamento executado
por um companheiro torna-o uma prova muito dura de superar fazendo
pleno uso das três componentes acima mencionadas, derivando daí o
seu nome – Sanchin ou “Três Batalhas”.
Posto isto, podemos verificar que bastaram dois pequenos conceitos
(o conhecimento do por que da subida e descida da perna no primeiro
Kata e do significado do nome da segunda forma) para alterar o nosso
conceito a respeito dos mesmos e construir a unidade lógica que
constitui cada Kata.
Ankō Itosu em 1908 numa das suas dez instruções sobre o Karatê-Do
(conhecido como Tōde na época) afirma:
“A propósito dos Kata é necessário treinar repetindo-os mais vezes
possíveis. Porém, é absolutamente essencial conhecer o significado
e a aplicação de cada técnica. É necessário saber que existem
numerosos ensinamentos teóricos complementares aos Kata para as
técnicas de ataque, de defesa, de desprendimento e de agarre”
(ITOSU, 1908)
Enquanto ensinava os seus alunos e explicava as diferenças básicas
entre as escolas de Itosu e Higaonna, Kenwa Mabuni dava muita
atenção aos Kata. Acreditava que os Kata, que combinavam técnicas de
ataque e de defesa, era a parte mais importante do Karatê-Do, e que
era necessário entender o significado de cada movimento e executá-lo
corretamente. Kenwa Mabuni foi o primeiro a introduzir o conceito
do Bunkai-kumite e do Yakusoku-kumite, que demonstram o propósito
e mostram de forma clara o uso correto de cada Kata. O resultado
final do treino apropriado do Kata e do Kumite é a possibilidade
de aplicar as técnicas de Karatê-Do no combate real. A prática dos
Kata também ajuda a transmitir os conhecimentos neles codificados
para a geração seguinte.
De acordo com Kenwa Mabuni, o estudante ignorando o Kata e
praticando apenas o Kumite, nunca irá progredir no Karatê-Do e nem
irá entender o seu verdadeiro significado.
Taiji Kase, 9º dan de Karatê-Do Shōtōkan, conta que os mestres
seniores diziam que Yoshitaka Funakoshi (filho do pai do Shōtōkan
- Gichin Funakoshi), quando fazia um Kata, levava quem estava
assistindo a perceber uma sensação especial e uma tremenda impressão
de perigo iminente. Isso os levava a dizer que era assim que se
deviam fazer os Kata. Também segundo o mestre Kase, todos que
observam a execução de um Kata devem sentir e notar algo que provêm
das vibrações da nossa força interior e determinação. Se os que
observam não sentem nada, o Kata não está sendo bem realizado, é
como uma "ginástica ou baile".
Ao analisarmos os três parágrafos precedentes que dizem respeitos
a afirmações de figuras de inegável respeito e conhecimento no
universo do Karatê-Do, podemos concluir que a prática de Kata deve
ser constante e séria, que é de extrema importância para a defesa
pessoal, e também que a forma de executá-lo deve transmitir o poder
de quem o realiza.
É necessário destacar a grande importância da prática correta dos
Kata e fazer uma análise deste processo como um meio para atingir
um objetivo (a eficiência em combate real, melhoramento da condição
física, etc.) e não encará-los como um fim por si só.
Não devemos admirar um mestre por conhecer muitos Kata, pois
quantidade nunca significou qualidade. Mais importante é a sua
qualidade humana e técnica, que faz com que ao entrarem no Dōjō
a sua presença se sinta de imediato e que quando praticamos com
eles ou os vemos em ação constatemos o seu enorme potencial.
Devemos considerar que cada um de nós deve procurar a verdade
daquilo que pratica e não cair no que o grande mestre "Bushi"
Matsumura relata como:
“Arte marcial do intelectual - "pensamos em diferentes formas de
treino sem as aprofundar. Conhecemos numerosas técnicas, mas a
prática é como uma dança sendo incapazes de aplicá-las em combate...”
Arte marcial do pretensioso - "agitamo-nos bastante sem nos
treinarmos realmente, portanto, falamos muitas vezes das nossas
façanhas gloriosas, causamos tumultos, desordens e ofendemos os
outros. Segundo as circunstâncias arriscamo-nos à autodestruição
ou à desonra da nossa família".
Assim ele acrescenta – “São inúteis as artes marciais do intelectual
e do pretensioso” - valorizando apenas a arte marcial do Budō.”
Atualmente é fácil ver o quanto a prática do Kata é banalizada,
não havendo nem a emoção nem a seriedade necessária para a sua
prática, acabando-se por cair numa análise superficial em vez de
profunda e completa.
Esperamos com este texto dar voz (com toda a humildade) a uma
maioria silenciosa que pratica Karatê-Do que por vezes atravessa
um abismo de desconhecimento em relação a arte que pratica.
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Referências:
MAGALHÃES, Mário. Kata – Conceitos e pensamentos. Disponível
em: <http://www.cao.pt>. Acesso em: 15 de Outubro de 2005.
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